Por Elaine Tavares
O guri entrou no ônibus lotado
das seis da tarde. Esgueirando-se pelo meio das gentes que apinhavam o coletivo
começou a cantilena. “Um minuto de atenção, por favor. Eu poderia estar
roubando, mas estou aqui oferecendo esse adesivo. Minha família
precisa comer...” E por aí foi.
As pessoas se mexiam incomodadas,
como sempre ficam quando aparece alguém pedindo. Alguns viram a cara para a
janela, outros baixam o olhar, outros fingem dormir. Há uma indiferença
gritante diante do outro, exposto até as vísceras. Eu não consigo. Aquilo me
toca.
Aprendi a ler muito cedo, tinha
cinco anos. E o fiz a partir dos livros de história que meu pai comprava aos
borbotões dos vendedores que batiam na porta de casa. Ele tinha pena dos pobres
homens e nós ganhávamos cultura.
Dentre os livros que eu lia
estava um, com historietas de Hans Christian Andersen. Uma delas, em
particular, sempre me emocionou. Era a da vendedora de fósforos. Numa noite de
Natal uma guriazinha anda pela rua cheia de neve, tentando vender seus fósforos
para poder comer e se aquecer. Ninguém compra. Ela então se abriga numa
marquise onde observa as famílias comendo, felizes, celebrando o Natal. E ela
está sozinha, com frio e com fome.
A história termina com a menina
morrendo de frio, em pleno
Natal , porque ninguém lhe havia comprado um fósforo. Aquilo é
horrível.Eu lembro que ficava no tapete, lendo, e questionando minha mãe. Ela
tinha sempre as respostas.
Uma vez, lendo a história, em
lágrimas, comentei indignada: “Alguém podia comprar o fósforo. A guriazinha não
morreria”.
E minha mãe, da pia, bramiu a
faca que lavava: “Não deveria era existir criança precisando vender fósforo”. E
eu assenti. Era isso.
Depois, cresci, e fui para a
vida, para a grande política. Talvez na minha cabeça de menina eu buscasse
aquela realidade apregoada pela minha mãe.
Viver num mundo em que todos
pudessem ter dignidade. Mas, as coisas não são simples assim. Então, com Rosa
de Luxemburgo, aprendi que, às vezes, temos de caminhar fazendo reforma e
revolução, ao mesmo tempo. Por isso, faço sempre o
que minha mãe falou: luto para
que todos tenham direito à vida boa e bonita. Mas, enquanto isso não acontece
de verdade, eu “compro o fósforo”.
E é o que faço quando vejo esses
guris nos ônibus, pedindo, ou vendendo seus adesivos feinhos.
Não lhes viro a cara, nem finjo
que não existem. Gosto de olhar para eles, ouvir, atenta, toda aquela
cantilena, sorrir e estender o que posso dar.
Não é musculação de consciência,
porque isso não aplaca minha ira. Sei que não muda nada no complexo sistema
capitalista que tira das maiorias a possibilidade de viver com dignidade. Mas,
nesses momentos, é como se eu ainda fosse aquela guria franzina, deitada no
tapete da velha casa em São Borja ,
vendo a menininha dos fósforos. Eu nunca poderia deixá-la morrer. Se algum
cristão, um único, lhe tivesse comprado o fósforo, ela poderia ter seguido seu
caminho, virado mulher, transformado o mundo e feito, quem sabe, uma revolução.
Era só um fósforo, uma coisa de nada.
Por isso sigo assim, repartindo o
que tenho, compartindo com alegria, sem medo de parecer burra ou piegas. E
quando isso acontece é como se eu voltasse àquele universo cinzento das tristes
histórias de Andersen e o colorisse. É como se eu estivesse
ali, na marquise, comprando o
fósforo, e dizendo:
“se aquece, e vem. Temos um mundo
inteiro a construir”. E a gente saísse dali, saltitando, no rumo da revolução.
Eu e a menina do fósforo, incendiando o
mundo. Ah... como eu gosto de ter
esperanças!...