Pelo direito de migrar.

Camila Asano e Diego Morales
No ano em que a Comissão Nacional da Verdade deve concluir as atividades, o Brasil finalmente sinaliza disposição de deixar as sombras da ditadura em pelo menos um tema: as migrações. Entre os países sul-americanos, o Brasil está entre os que não reformaram a lei de migrações depois da redemocratização. Hoje, possui legislação inconstitucional, que viola sistematicamente os direitos humanos.
Agora, o país tem chance concreta de avançar: comissão de especialistas, convocada pela Secretaria Nacional de Justiça do Ministério da Justiça, acaba de entregar proposta de nova lei para as migrações, guiada pelos princípios constitucionais e pelos tratados de direitos humanos. O avanço é consequência da luta incansável da sociedade civil e do mundo acadêmico. Recentemente, novos fluxos migratórios, como de haitianos e ganenses, ajudaram a escancarar as omissões e falhas da legislação vigente.
É hora de o Estado responder concretamente a essas demandas históricas e construir política integral de Estado pautada nos direitos humanos, como já fizeram países como a Argentina e o Uruguai. O Estatuto do Estrangeiro é o marco normativo que determina os direitos e deveres dos imigrantes no Brasil e estabelece as diretrizes para a abordagem do Estado em relação aos fluxos migratórios. Datada de 1980, sua lógica parte do pressuposto de que as migrações representam risco à segurança nacional e à organização institucional do Brasil.
Enquanto a Constituição aponta para a construção de uma sociedade “sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”, o Estatuto do Estrangeiro determina política de controle migratório que, longe de exercer impacto sobre as migrações, que possuem causas profundas, tem como consequência que grande parte dos imigrantes passem anos vivendo de forma irregular.
Os procedimentos de solicitação de visto ou residência, essenciais para a garantia de direitos, são lentos, pouco transparentes e muitas vezes discriminatórios, com ampla margem de discricionariedade das autoridades que não necessariamente se valerão de critérios baseados nos direitos humanos. A política migratória mantém e agrava a situação de vulnerabilidade das pessoas. Muitas vezes a dificuldade para obter a documentação leva os migrantes a aceitar práticas abusivas, como condições de trabalho análogas à escravidão.
Para driblar a burocracia, os usos distorcidos dos mecanismos existentes se converteram em regra. O exemplo mais notável é o da generalização dos pedidos de refúgio, única via possível de entrada e permanência regular no Brasil para os que não possuem visto. Citem-se também as resoluções do Conselho Nacional de Imigração (CNIg), que, se por um lado avançaram para a lógica de direitos humanos, por outro contribui para a garantia de direitos à conta-gotas, determinando situações e populações específicas para as quais os direitos estão garantidos.
A nova Lei de Migrações deve partir de paradigma oposto, de respeito aos direitos humanos e de reconhecimento do valor da contribuição cultural, social e econômica dos migrantes para o país. Deve promover a entrada e permanência regulares por meio de procedimentos rápidos, transparentes e não discriminatórios. Deve prever, ainda, o direito amplo à defesa e a recursos judiciais efetivos contra medidas que possam representar violação de direitos.
São igualmente necessárias transformações institucionais para a implementação de tal legislação, com instituição direta e integralmente responsável pelo tema, dado o fracasso do modelo atual, fragmentado e localizado em instituições como a Polícia Federal, o Ministério de Relações Exteriores, o Ministério do Trabalho e o Ministério da Justiça. É urgente que o Brasil seja coerente com o atual momento da sua democracia e garanta de fato direitos aos imigrantes.
O encaminhamento ao Congresso da proposta apresentada pela Comissão de Especialistas constitui passo fundamental para isso. Ao fazê-lo, o país reforçaria que alternativa para o tratamento restritivo dado aos migrantes pelos países do Norte é possível, e se tornaria uma das referências mundiais, com alguns dos vizinhos latino-americanos, na construção de novo paradigma no tratamento das migrações, pautado nos direitos humanos.
Camila Asano – Coordenadora de Política Externa da Conectas Direitos Humanos (Brasil)
Diego Morales – Diretor da área de Litígio e Defesa Legal do Centro de Estudios Legales y Sociales (Argentina)

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